Transcrição de entrevista-reportagem publicada no jornal Folha da Manhã (Passos, domingo, 5 de abril 1987)
Nome: Paulo Esper Pimenta - 47 anos
Naturalidade: Passos - MG
Profissão: Arquiteto
Preso em Junho de 1971 na sua construtora à rua 7 de Abril em São Paulo, tendo ficado quatro meses na OBAN - Operação Bandeirantes, DOPS e Presídio Tiradentes em São Paulo.
Motivos alegados: Participação de movimentos e lutas de cunhos esquerdistas, para que houvesse a possibilidade de enquadramento na Lei de Segurança Nacional.
Paulo Esper Pimenta divide hoje seu tempo entre o Rio de Janeiro e Passos, onde atua como arquiteto na prefeitura municipal, tendo ainda uma construtora nesta cidade. Formado em arquitetura pela Universidade (Federal) de Minas Gerais, onde começou a fazer política nos diretórios acadêmicos e na JUC - Juventude Universitária Católica, alicerce para sua evolução política, já que partindo daí filiou-se ao movimento da Ação popular.
Em 1963 já formado, foi para São Paulo e com o golpe de 1964, preferiu ficar por lá, já que em Belo Horizonte a repressão estava muito forte e todos os seus companheiros foram presos - inclusive aquela que viria a ser sua esposa - e enviados a Juiz de Fora e DI de BH. Na capital paulista continuou a fazer política, mas de forma mais escondida, mais anônima. A repressão do momento era tamanha que os partidos e movimentos políticos foram desvinculados e dissolvidos e as pessoas sumiam cada um tomando seu rumo. Os partidos, na realidade, não estavam preparados para o golpe.
Paulinho Pimenta, como é mais conhecido, casou-se em 1966 e em 1967 os dois se filiaram novamente ao Partido da Ação Popular, que ressurgia após o golpe. Desta vez era tudo organizado e pela primeira vez em 1968, foi declarado como um partido Marxista-Leninista. Este partido apoiava certos pontos do governo João Goulart, como a reforma agrária, a desapropriação das terras nas rodovias e até tinha um representante no Palácio, era o Ministro da Educação, Paulo de Tarso. Mas a organização era mesmo os padres, como Padre Laje, ainda hoje atuando, o Frei Chico que era dominicano, o Frei Matheus que morreu há pouco tempo em Brasília, já bem velhinho.
Mas o Partido da Ação Popular começou a ter divergências. Por um lado, um grupo queria a reprodução da revolução chinesa no Brasil e por outro, caso de Paulo Pimenta, havia o outro grupo que defendia um modelo próprio de atuação política, sem experiências externas. Este segundo grupo formou então o PRT - Partido Revolucionário dos Trabalhadores, com a ideologia de que deveria ser feito um modelo bem brasileiro de revolução socialista, a começar por um trabalho de conscientização de toda a população e que as ações deveriam partir da população e não de líderes intelectuais. Eles acreditavam na luta armada, mas a longo prazo.
O PRT foi fundado em 1969 e já estava organizado em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Recife e Maranhão. O partido teve certas atuações como a desapropriação de bancos, supermercados e reuniões com a população, congressos no campo e cidade e a cada dia a repressão ia ficando mais forte.
Paulo Pimenta, como muitos dos seus companheiros, inclusive sua esposa, acabaram sendo presos pelo Exército e barbaramente torturados nas dependências da OBAN em São Paulo.
A PRISÃO
Em junho de 1971, foi preso um integrante do partido em São Paulo. Ele e a mulher estavam trancados há 29 dias e diante de torturas e ameaças de rapto dos filhos, revelaram alguns nomes de companheiros e entre eles, o de Paulo Esper Pimenta.
“Neste junho de 1971, eu estava em meu escritório à rua 7 de Abril em São Paulo, quando me chamaram para fazer um depoimento dizendo que eu voltaria logo em seguida. Disseram que seria um depoimento muito rápido e acabaram me levando para a OBAN, à rua Tutóia. Chegando lá, a primeira cena que vi, foi aquele meu companheiro no pau de arara, todo arrebentado, praticamente morto. Quando entrei na sala de tortura, ele me contou o que estava acontecendo e me disse: Olha Paulo, o pau tá muito feio, esse tempo todo aqui eu não tinha nem mais idéia de tempo e falei isso, isso e aquilo. Ele me contou os nomes que havia dado à repressão para mim, ele estava dando as dicas de onde havia chegado nas confissões. Ele me disse também que não adiantava eu dizer que não o conhecia, pois as identificações já tinham sido feitas. Me levaram então para uma outra sala e começaram o interrogatório preliminar pedindo que desse o nome de pessoas e eu repeti aqueles que me companheiro já havia revelado. Eles queriam também que eu confessasse a minha participação em alguma luta, ou partido político, para com isso me enquadrar na Lei de Segurança Nacional. Me interrogaram por um tempo breve e me reconduziram à cela, mas eu já estava derrubado moralmente, pois eles falaram muito da minha mulher e ameaçaram pegar meus meninos.
“No interrogatório do dia seguinte, eles começaram com a mesma tática do dia anterior e já com ameaças maiores de tortura e foi aí a primeira vez que eu senti a maquininha de choque deles. Eles me enrolaram dois fios nos dedos, nas orelhas, nos órgãos genitais e a maquininha ficava funcionando na mão do torturador”.
“Eles te penduravam no pau de arara, passavam uma bandagem nos pulsos e amarravam um ao outro, te colocavam pelas pernas numa vara apoiada dos dois lados e a perna passava por entre os braços amarrados e ali dentro eles te jogavam água e davam choque elétrico e você quase que girava em cima daquele pau. A dor é tanta que você vai encolhendo, parece que você quer enrolar o corpo todinho. Eles protegem os pontos fracos. Colocam uma bandagem na boca para evitar que os dentes se quebrem e tudo era assistido por um médico para ver o limite que você tinha de resistência”.
“... eles tinham a preocupação de não deixar marcas. Eles pegavam os seus órgãos genitais e enfiavam um fio elétrico e enrolavam num material contundente numa das pontas e na outra eles iam dando lambadas no resto do seu corpo, então cada hora você sentia dor num ponto. Não fiquei com marcas, mas um mês depois tive um problema de hemorragia decorrente deste tratamento. E tem ainda o desequilíbrio emocional...”
Mas o torturado, segundo afirma Paulinho Pimenta, no momento da sessão, adquire uma força grande que não se sabe de onde vem. A cada momento que o torturador ameaça a chegar à destruição, o espancado renova as suas forças. Mas junto à força, está o medo...
“Medo? O medo era demais. Muito mesmo. Mas era maior o medo de soltar alguma coisa do que do próprio aparato deles. O medo era de começar a abrir nas informações e depois ter que explicar ainda muito mais. Mas medo de morrer eu só tive uma vez. Foi quando me colocaram num carro para fora da OBAN para que eu mostrasse uma casa à eles. Eu mostrei o endereço, foi em Santo André, e no meio do caminho eles falaram que eu podia fugir e a gente já tinha ouvido estas histórias na cela de que eles pegavam o prisioneiro num lugar descampado e diziam que poderia ir embora. Mas eu estava algemado e sabia que eles usam esse artifício para apagar o indivíduo. Nesta hora eu tive medo de morrer. E é também nestas horas que o preso morre de acidente de trânsito, tiroteio e coisa parecida.
A tortura psicológica e a ofensa à moral também era uma coisa muito comum naquela época.
“Depois de uma semana mais ou menos eles prenderam minha mulher também e fizeram uma acareação entre nós dois, uma coisa muito violenta em termos de moral, falando o diabo de nós dois. Nessa hora a gente conseguia conversar um pouquinho e eu pude dar umas dicas à ela, como fizera meu colega, mas também ela foi torturada no pau de arara”.
O caso de Paulo Pimenta, segundo ele próprio afirma, não foi tão grave, mesmo que as torturas tenham sido bárbaras.
“Mas o meu caso não foi grave como o de outras pessoas. Na época em que estive lá, devem ter morrido lá, na OBAN, duas ou três pessoas. No dia que eu cheguei, morreu o pai do Ivan, um rapazinho que estava lá, acho que se chama Duarte. Estas pessoas morreram em sessões de tortura”.
O TORTURADOR
O que mais impressionou Paulo Pimenta no tempo em que ficou enjaulado nas dependências da OBAN em São Paulo, não foi tanto a tortura em si, mas a figura do torturador.
“Eu imaginava que ia encontrar aqueles gangsters gordões, com cara de bandido, aqueles touros, brutamontes. Mas não. Era gente jovem, de cabelos compridos, tipo 20 a 25 anos, com camisa vermelha, roupa colorida, então eu me impressionei, porque era gente que podia cruzar a rua todo dia, que podia ser amigo de dentro de casa. Eles tinham técnicas especiais de tortura, que naquele tempo, eram feitas em três equipes. Cada uma atuava em 24 horas e tinha as suas características. Uma levava você na conversa, a outra vinha com o pau antes de perguntar qualquer coisa e a outra começava e vinha com a tortura em seguida”.
“O palavreado que eles usavam no momento da tortura era de xingatório, para te humilhar mesmo, te xingando, fazendo ameaças, dizendo que iria pegar teu filho, a mulher. De repente a gente sentia um desânimo da parte deles, mas era uma coisa muito difícil de você sentir, porque as informações que eles tinham eram muito grandes para demonstrar insegurança. Raras as vezes que você podia sentir que as informações eram furadas, que havia um corte nelas e que eles queriam mais. E começavam a divagar, a supor. E era nesse ponto que você conseguia dar uma parada, mas era aí que ele mais a brutalidade, à porralouquice”.
O COMEÇO DA LIBERDADE
O começo da liberdade do preso político naquela época, como foi o caso de Paulo, da esposa e companheiros, era quando recebiam a noticia de que seriam transferidos para o DOPS. Porque aí eles seriam presos formalmente.
“Até então era uma prisão feita pelo Exército, num negócio que não constava em ata, em lugar nenhum, é como se a pessoa não tivesse passado por ali, não tivesse vivido aquele tempo. O alívio da gente é quando chega a notícia de que seriamos transferidos para o DOPS, porque aí, formalmente estaríamos presos. Do contrário seríamos desaparecidos, mortos no trânsito, tiroteio, etc... Aí vem o interrogatório formal, com delegado, escrivão e testemunhas de acusação que eram os próprios torturadores. Eles iam depor como se fossem velhos conhecidos e contavam tudo que havíamos dito nas torturas da OBAN.
E o interessante é que havia uma certa rivalidade entre o DOPS e a OBAN. O chefão do DOPS e também torturador, o Fleury, marcava pontos quando a captura era sua, o mesmo acontecendo na Operação Bandeirantes. Eles chegavam a sonegar informações uns para os outros.
Nas dependências do DOPS, os interrogatórios continuavam, mas sem torturas, e de forma mais leve, pelo menos foi assim que aconteceu com o Paulo.
“O processo foi processo foi montado e a gente deve ter ficado lá mais uns 40 dias e de lá encaminharam a gente para o Presídio Tiradentes para ficar esperando o processo. Mas aí era mais tranqüilo, pois a gente ficava em cela comum cozinhando, tinha televisão, jornal, bate papo, só que as pessoas que queriam nos visitar eram muito maltratadas, principalmente as mulheres que eram tratadas sem o menor respeito para ver se havia material de fuga”.
Paulo Pimenta ficou preso no total, quatro meses. Após isso saiu em liberdade vigiada, tendo que comparecer ao DOPS duas vezes por semana, depois uma, depois uma vez por mês. O processo só veio em 1974, três meses depois, quando ele foi absolvido em 5 de abril, dia da Revolução Portuguesa. O promotor recorreu, como era de praxe, e um ano depois o Supremo Tribunal Federal julgou a apelação.
“Acontece, que a nossa sentença anterior, para não dizer que eles haviam agido de forma autoritária, disseram que éramos culpados, mas estávamos em liberdade. Uma figura jurídica que simplesmente não existia. Diante disso, o STF nos deu seis meses de prisão. Nós apelamos, mas aí veio a anistia e tudo foi anulado. Mas, de qualquer forma, na ficha constava preso político condenado.
Hoje Paulo Pimenta leva uma vida normal e quando questionado se reconheceria os seus torturadores, ele responde: “Eu acho que identificaria o torturador, não sou bom fisionomista, mas aquelas caras eu me lembro muito bem delas. A minha reação seria ignorá-los. Eu tenho ódio profundo deles, mas não vejo sentido em valorizar estas pessoas, chegando a ter um encontro com elas ou coisa parecida”.
“Se este tempo passou? Não, não passou não, tá muito vivo ainda. Trauma não tenho mas muito ódio e raiva e isso não vai passar nunca. A única coisa que eu odeio na vida é esse tipo de gente”.
Fonte: Conteúdo publicado pela Divisão de Processamento de Dados, extraído em sua inteira integridade, do CD-Rom do Projeto de Pesquisa sobre a Arquitetura Modernista de Passos - MG (gravado e editado em Maio/2010).